Uma equipa de investigação, coliderada pela Universidade de Coimbra (UC), criou e implementou com eficácia uma nova intervenção de treino cognitivo, com recurso a tecnologias de informação e comunicação, destinada a sobreviventes de Acidente Vascular Cerebral (AVC). Perante os resultados promissores deste estudo-piloto, que resultou em diversos ganhos cognitivos, os investigadores esperam que este programa – o NeuroAIreh@b – possa vir a contribuir para reduzir assimetrias no acesso a programas de treino cognitivo personalizado incrementando, assim, a intensidade e a frequência do acompanhamento de pessoas que sobreviveram a um AVC.

O programa NeuroAIreh@b – desenvolvido por investigadores do Centro de Investigação em Neuropsicologia e Intervenção Cognitivo-Comportamental (CINEICC) da Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da UC (FPCEUC), do Nova Laboratory for Computer Science and Informatics (NOVA LINCS) e do NeuroRehabLab da Universidade da Madeira – tem por base a realização de atividades de vida diária, como a ida às compras ou a preparação de refeições, mediadas por um recurso digital, neste caso um tablet.

A investigadora do CINEICC e do NOVA LINCS, e primeira autora do estudo, Joana Câmara, explica que “o programa é personalizado de acordo com o perfil neuropsicológico dos sobreviventes, a partir de uma avaliação neuropsicológica compreensiva que serve para definir as exigências do treino cognitivo”. Neste treino, os participantes desempenham diferentes tarefas de treino cognitivo no tablet,tais como deslocar-se de automóvel até ao supermercado, ir às compras, selecionar os produtos necessários para confecionar uma determinada receita e efetuar o pagamento das compras.

“À medida que os sobreviventes realizam as sessões, a dificuldade do treino cognitivo é ajustada em função do seu desempenho através de algoritmos de inteligência artificial, sendo  a experiência verdadeiramente interativa, com sistemas de pistas, feedback auditivo e visual, e um sistema de aprendizagem sem erro automatizado para apoiar no desempenho das tarefas, bem como elementos de gamificação, como medalhas e pontos, para incrementar a motivação e envolvimento no processo terapêutico”, revela a investigadora.

Para estudar a viabilidade deste programa, foram recrutados 30 participantes, que sofreram um AVC e que apresentam sequelas cognitivas crónicas, tais como dificuldades ao nível da atenção e concentração, memória episódica verbal e funções executivas (como o planeamento e a resolução de problemas). Foram divididos em três grupos: 10 participaram no NeuroAIreh@b, com recurso a um tablet; 10 participantes realizaram o já existente Programa Adaptável para Reabilitação Personalizada do Acidente Vascular Cerebral, com recurso a papel e lápis; e os restantes 10 participantes que não tiveram disponibilidade para cumprir o protocolo de intervenção (que consistiu em 12 sessões de treino cognitivo de 30 minutos, realizadas duas vezes por semana) foram também acompanhados.

Joana Câmara revela que “o programa NeuroAIreh@b foi o único a contribuir para a generalização dos ganhos cognitivos obtidos durante a intervenção para a vida real dos sobreviventes de AVC”. A neuropsicóloga elucida que, em termos práticos, “isto traduziu-se em melhorias na sua qualidade de vida e numa maior capacidade para realizar atividades de vida diária na comunidade, o que parece sugerir que o treino cognitivo mediado pelas novas tecnologias da informação e comunicação, provido de conteúdos de treino que simulam as atividades do dia a dia dos sobreviventes de AVC, tem o potencial de otimizar o seu processo de reabilitação, melhorar a sua qualidade de vida e participação social, mesmo passados vários meses desde o evento vascular cerebral”. Já o grupo de sobreviventes que não realizou qualquer intervenção “piorou significativamente em vários domínios cognitivos, o que teve um impacto negativo na sua capacidade funcional, ou seja, na capacidade para desempenhar as atividades de vida diária”, acrescenta.

Para chegar a estas conclusões, todos os participantes foram submetidos a avaliações neuropsicológicas em três momentos distintos: antes de iniciar o programa; após a participação no programa; e passados três meses desde o término do programa. Estas avaliações tiveram como propósito avaliar domínios cognitivos como a cognição global, a velocidade de processamento e a memória episódica verbal (a capacidade de recordar factos recentes), e também domínios não cognitivos, como a sintomatologia ansiosa e depressiva, a qualidade de vida e a funcionalidade dos sobreviventes.

Sobre a importância de programas como o NeuroAIreh@b para sobreviventes de AVC, Joana Câmara partilha que “além das sequelas visíveis após um AVC, existem aquelas a que chamamos sequelas ‘invisíveis’, que são as cognitivas e emocionais que têm merecido menos atenção”. “Os sobreviventes de AVC, mesmo estando na fase crónica, podem beneficiar deste tipo de programas de treino cognitivo, sendo que estes programas podem ajudar a prevenir trajetórias de declínio cognitivo patológicas, uma vez que os sobreviventes de AVC apresentam um risco acrescido, comparativamente à população em geral, de poder vir a desenvolver demência vascular na idade avançada”, destaca a investigadora. “O AVC representa a principal causa de mortalidade e de incapacidade a longo-prazo em Portugal”, relembra.

No contexto nacional, “os programas de treino cognitivo e de reabilitação cognitiva são ainda muito escassos no Serviço Nacional de Saúde, pelo que é premente investir na sua disseminação e reforçar as equipas de reabilitação com neuropsicólogos que detenham experiência na área da intervenção neuropsicológica”, avança a investigadora. No caso do NeuroAIreh@b, tem ainda a vantagem de poder ser aplicado presencialmente ou a distância, uma vez que dispõe de módulos de monitorização remota que permitem ao neuropsicólogo supervisionar o desempenho do sobrevivente de AVC enquanto realiza o treino em sua casa.

“Vale a pena nos debruçarmos sobre o desenvolvimento e implementação de programas de treino cognitivo e de reabilitação cognitiva no contexto comunitário para tornarmos acessível esta resposta terapêutica não-farmacológica a mais sobreviventes de AVC, em face das sequelas cognitivas crónicas que estes manifestam”, sublinha a investigadora.

A próxima etapa da implementação do NeuroAIreh@b passa por “investigar a sua utilização noutras instituições de saúde no contexto português, pretendendo-se, deste modo, alargar a dimensão da amostra de sobreviventes de AVC a residir na comunidade, por forma a verificarmos se os dados preliminares encorajadores que obtivemos são corroborados”, avança Joana Câmara.

Este estudo contou ainda com a participação de Manuela Vilar, docente da Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade de Coimbra e investigadora do Centro de Investigação em Neuropsicologia e Intervenção Cognitivo-Comportamental; da neuropsicóloga Sofia Aguiar, do Hospital Central do Funchal; e de investigadores da Universidade da Madeira, nomeadamente Teresa Paulino, Sergi Bermúdez i Badia, Ana Lúcia Faria e Eduardo Fermé.

Os resultados da intervenção estão disponíveis no artigo científico Comparing adaptive tablet-based cognitive training and paper-and-pencil cognitive training: a pilot randomized controlled trial with community-dwelling stroke survivors (Comparação entre o treino cognitivo adaptativo mediado pelo tablet e o treino cognitivo em papel-e-lápis: um estudo-piloto de tipo ensaio clínico, aleatorizado e controlado com sobreviventes de AVC na comunidade, em português), publicado no International Journal of Clinical and Health Psychology e disponível em https://doi.org/10.1016/j.ijchp.2025.100627.